ABEBE "FANON" BIKILA
- Igor Morais
- 18 de dez. de 2018
- 7 min de leitura
BK' mostra novamente porque é um MC gigante.

Recentemente o rapper carioca BK’ lançou um disco intitulado Gigantes. Depois do sucesso de crítica do seu primeiro álbum Castelos & Ruínas (2016), muito se especulava sobre como seria o segundo disco. Creio que os fãs tiveram um grande medo de se decepcionar, já que o C&R é um clássico da década. Finalmente Gigantes saiu e com ele veio o alívio e a alegria, pois o rapper mais uma vez tinha se superado. De todas as faixas, uma em especial chamou a minha atenção na primeira orelhada do álbum: Exóticos. O tema abordado pelo MC carioca é a fetichização e objetificação do corpo da mulher e do homem negro. Frantz Fanon é um autor que vai abordar todas essas questões no livro Pele Negra, Máscaras Brancas, principalmente em seu capitulo chamado O preto e a psicopatologia. O objetivo é buscar compreender os versos do MC através do estudo de Fanon, entender como se dão as relações inter-raciais, a questão do colonizado e do colonizador, entre outras coisas.
Primeiramente é preciso falar um pouco de Frantz Fanon. Ele foi um psiquiatra e intelectual da Martinica, colônia da França. Seus trabalhos tem tudo a ver com a questão da colonização e descolonização, além de pensar a questão dos negros, dos africanos e seus descendentes. Fanon é autor de textos clássicos, como o já citado acima e também o livro Os Condenados da Terra. Essa é só uma rapidíssima passada por quem é Frantz Fanon. Espero que o texto os incentivem a procurarem mais sobre esse grande autor negro.
O verso que abre a música é esse: “Ela saiu de algum filme, uma foto, uma música/ Ela não existe, eu de mão dada com ela/ Olha quão bela, atraio os olhares/ Pessoas vão pra janela/ É que ela é tão melhor que aquelas outras/ Pele e cabelos, minha mão desliza/ Faculdades e jantares, olha ela é tão fina/ De mão dada com ela todo mundo espia/ Todo mundo grita e diz que a sorte é minha/ Porquê que é sorte minha?”. O rapper nesse primeiro momento elogia a mulher branca que está ao seu lado, ele se sente orgulhoso por isso, as outras pessoas se sentem orgulhosos por eles. A mulher branca é como se fosse o posto mais alto para o homem negro chegar. Pode ser tanto para uma questão de vingança como Fanon fala, quanto para a ideia da ocupação de um espaço, no caso o espaço do colonizador. Óbvio que isso é uma ilusão. O fato de esse homem negro estar com essa mulher branca, faz com que os olhares estejam atraídos para ele. Isso pode servir de metáfora para a própria colonização, pois a mulher branca pode fazer o papel do colonizador, que é tido como superior, fino, elegante, culto. E esse homem negro só poderia chamar atenção estando com alguém assim, “pertencendo” de alguma forma a esse mundo colonizado. Sendo assim ele corta na própria carne para poder fazer parte dessa sociedade. A grande questão é que ele nunca vai fazer parte de fato, pois os colonizadores não o aceitam. Essa ilusão é criada pela própria estrutura opressora da colonização, é isso que eles querem que o colonizado pense, que ele e sua cultura são inferiores. Fanon está fazendo um estudo a partir de um mundo colonizado, mas isso não deixa de ter similaridades com o racismo estrutural que está sendo apontado na faixa . Fanon escreve que a vontade do colonizado é ser colonizador, pois ele sente "inveja" da posição e dos privilégios que esse tem dentro da sociedade. Todo mundo ao seu redor sente a mesma coisa, não é atoa, por exemplo, que na canção mostra que as outras pessoas dizem que BK' tem sorte de estar com aquela mulher tão fina. É dessa forma que o homem negro é afetado mentalmente, essa sensação falsa que o homem negro tem nas linhas da música, pois sua mente está sendo colonizada. É tipo: Corra! Ao mesmo tempo ele começa a se questionar, porque seria sorte dele? A partir daí o rapper começa na sua jornada abordando a questão da objetificação do corpo do negro, mostrando seu talento em criar todo um cenário dentro da nossa cabeça a partir desse primeiro verso.
“Diz que eu pareço um gangster/ Me olha como um hamster/ Descendente de Ramsés, meu poder, me abster/ Mal sabe o tamanho do mundo/ E quer saber se é real o tamanho do mundo que eu tenho nas calças/ E já falou pra todo mundo que eu tô desempregado e sem estudo, mas na cama, aulas”. Aqui o MC fala sobre toda intenção por trás da fetichização do homem negro. Fanon escreve sobre o medo e ao mesmo tempo o tesão que a mulher branca coloca sobre a figura e o corpo do negro. E nisso entra todos os estereótipos criados sobre os negros. Eles são vistos como maus, como um gangster, alguém que não é sensível, não tem sentimentos, e que só sabe transmitir medo. Esse medo é parte do fator fetichizador das mulheres brancas, é a negrofobia. O estereótipo do homem negro que vai estrupá-la, que vai machuca-la. Ela o vê dessa maneira, ao mesmo tempo em que o olha com uma espécie de sadomasoquismo, como se ele fosse um pequeno bichinho indefeso. Sendo assim ela quer mandar nele, ela quer transar com ele. Pensa como isso é contraditório e racista pra caralho. Isso fode com a cabeça da pessoa. Outro estereótipo tratado por Fanon é a questão da descendência africana e a cor da pele estarem ligadas a ideia de que o homem negro seria bem dotado, que ele na cama teria uma força sobre humana, uma máquina de fazer sexo. BK’ trata disso depois da metade desse verso, já que a mulher quer saber se é verdade ou não sobre o tamanho do seu "documento". Ela o humilha, dizendo que ele não tem emprego, ou até estudo, mas que na cama ele manda super bem. Ela está reduzindo o negro ao pênis, ele não é nada mais que isso pra ela. Essa é uma questão que deve ser discutida, pois o homem negro é forçado a entrar na casca desse esteriótipo, se não ele é "excluído". Um vídeo interessante pra se pensar isso é do Spartakus Santiago, onde ele fala sobre a solidão do gay negro (veja aqui).
Segundo Fanon essa é uma forma tanto de estereotipar quanto de castrar o negro. O homem branco se sente incomodado com essa situação, apesar do estereótipo ser totalmente falso. Isso legitima o branco a castrar o negro. Creio que Fanon escreve isso tanto de forma literal, quanto na forma de metáfora. O homem negro é castrado de todas as formas, já que ele é reduzido sempre ao fator genital. É o que BK' aborda na música, pois ele é objetificado pela mulher branca. Seu corpo se torna um objeto, uma coisa qualquer. Ele vai além, falando sobre a questão da mulher negra também: “O terror do homem negro/ A solidão da mulher negra (…) ‘Eu acabei com o preconceito/ Fui pra cama com um preto/ Ele tem cara de mau’/ ‘Ela tem sorriso branco/ Ela é da cor do pecado/ Que me perdoe os santos/ Mas olhe o tamanho da roupa/ Ela tava me tentando’”. Essa é uma parte do refrão, onde o rapper carioca trata do sentimento do homem e da mulher negra, além de metaforicamente cantar como se fosse um homem e uma mulher branca. A mulher branca acha que só por ter se relacionado com um homem negro, ela deixa de ser racista, o que na verdade é muito pelo contrário nesse caso. Ela é mais racista ainda. O homem branco da mesma forma, ele objetifica o corpo e a roupa da mulher negra da cor do pecado para legitimar o seu olhar invasivo, ou sua atitude machista e de abuso. BK', lógico, canta essa parte de forma irônica, assim como Fanon trata em seu livro sobre a questão dos estereótipos, e do “medo” do homem branco em perder a sua mulher para a “máquina sexual” que é o homem negro. Como Fanon escreve, o negro vai ser suporte da preocupação e do desejo dos brancos, mesmo se isso for real ou não. Não importa a realidade, o branco quer que seja assim. Isso é de um caráter totalmente sadomasoquista, pois a presença do negro é exigida mas de forma temperada, segundo Frantz Fanon. O sistema é perverso, ele age dessa forma de propósito.
O que na verdade Fanon aborda nesse capítulo é como esses “medos” na verdade legitimam toda uma estrutura racista e colonial das sociedades, no caso da França e Martinica em sua época, mas que podemos transpor para os dias de hoje. Infelizmente o mundo não mudou tanto em alguns sentidos. BK' termina sua música com a seguinte linha: “A carne mais barata do mercado é a carne negra e é servida crua”. Essa é frase de Elza Soares que BK' entoa no final. Toda essa objetificação, como se o homem e a mulher negra fossem meros produtos de vitrine, é legitimada para que a estrutura permaneça, para que os negros sofram todos os tipos de opressões da sociedade. As black faces, como são citadas na música, são feitas por pessoas famosas, por exemplo, que não entendem o porque daquilo ser um reforço a estética racista em relação ao negro. Os crimes raciais ganham legitimidade através de questões como essas expostas por Fanon e BK’. Fanon é interessante para pensar como o discurso pode ser muito eficaz. Em tempos onde se relativiza o discurso racista de Bolsonaro, precisamos mostrar como justamente as suas falas legitimam mais ainda o genocídio negro no Brasil. Bolsonaro não deu as facadas em Moa do Katendê, mas seu discurso odioso estimulou isso, logo ele tem uma culpa gigantesca. É por essas e outras que pessoas negras estão sendo mortas e não acontece nada. Isso sem contar a saúde mental dessas pessoas que sofrem isso no dia-a-dia. Com todos esses argumentos citados, podemos perceber como historicamente o negro foi escolhido para ser o bode expiatório. Vivemos em um país onde há crimes raciais como o de Amarildo, Marielle ou o da chacina de Costa Barros. Essas abordagens que BK' e o autor martinicano fizeram é de justamente mostrar como os negros estão sendo oprimidos todos os dias e por trás tem todo um sistema que valida isso. O rapper mostra mais uma vez porque é um dos grandes nomes da cena hip hop hoje do Brasil.
Espero poder escrever de forma mais minuciosa essa relação da obra de BK' com Frantz Fanon.
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