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Amiri, PRÍNCIPE QUE É REI

  • Foto do escritor: Igor Morais
    Igor Morais
  • 26 de nov. de 2018
  • 11 min de leitura

Atualizado: 28 de nov. de 2018

Amiri abalou a cena com suas novidades e vamos falar um pouco sobre neste humilde blog.


Vamos falar hoje dele mesmo, Amiri. Primeiro, seu nome é David, mas o significado de seu vulgo é príncipe, que vem do dialeto africano Suaíli. Das coisas que ouvi esse ano, poucas me chaparam tanto quanto esses dois singles que foram lançados no dia 21 desse mês. Pra quem não conhece, Amiri é um MC com alguns trampos bem sólidos. Ele tem 3 EP's e 1 Mixtape: Êta Porra!, Trinca, Capítulo 4 e "Antes, Depois", respectivamente. Confesso que não conheço todos os trampos dele, mas depois de ouvir hoje os dois singles que ele soltou, eu irei mergulhar em sua obra. Mas eu conheço Amiri de Mandume (eu, pariticularmente, acho o verso dele o mais foda) e de Apollo/ Rude Bwoy. Sei que é um dos melhores MCs da cena, os próprios MCs falam isso. Ele teve um certo hiato entre 2014 e 2016, mas já está desde o ano passado lançando algumas pedras em nossas cabeças pensantes. A questão é que Amiri é diferenciado no que faz, mistura de flow, métrica, caneta afiada, referências históricas, punch lines, experiência das batalhas, tudo isso com sua força na arte de ser um MC. É justamente isso, Amiri foi feito pra ser MC, essa arte ele domina. Já viu Get Down na Netflix? Amiri é tipo o Ezekiel. Sem contar que suas músicas são Hip Hop até os ossos. Só ouvir o single "Boom", lançado esse ano também, que consegue juntar o MC, as batalhas, o DJ riscando sem parar e a dança (BBoys e BGirls), já que o beat é muito Hip Hop. Ouví-lo faz parte de uma aprendizagem sobre cultura, História do Brasil e da África e sobre como o racismo é perverso. Completo no que faz, todos nós, dos ouvintes até os que fazem a cena acontecer, esperam que Amiri não pare nunca mais. Se você quiser conhecer mais dele, tem esse ótimo artigo no Medium: https://medium.com/@sousafelipe/pr%C3%ADncipe-da-punchline-quatro-motivos-para-se-ouvir-amiri-27b900283af6


É muito interessante ver que nas suas entrevistas (aqui e aqui) ele já falava sobre o conteúdo desses dois singles. Questões como racismo na escola, família, África, são abordadas no decorrer de sua fala. São experiências de um homem negro contadas em forma de rimas, penso que devemos parar e ouvir. Agora vamos as músicas.

A primeira é Um Dia de Injúria, que já mostra toda a genialidade de Amiri logo de cara. Ele diz que vai compartilhar uma história com a gente, a história é a do menino chamado Rakim (suponho eu uma alusão ao MC norte americano de mesmo nome). Rakim era meio complexado já que era um muleque franzino, queria ser alto como seus primos, pensava que aquilo poderia aumentar sua auto estima baixa. Amiri conta a história na terceira pessoa, como se ele só tivesse visto esse garoto de longe. Mas logo depois desse começo ele acaba "errando" e falando na primeira pessoa: "Nítido o quanto era tímido/ camisa de Rap ou camisa de time, do coringão/ dia a dia via a minha/ não/ sua aparência e condição virar piadinha". Ou seja, Amiri está contando sua história, além de ser uma história bem parecida com a maioria esmagadora dos jovens negros do Brasil e do mundo. A auto estima dos negros vem sendo jogada para baixo desde sempre, a nossa sociedade racista é a grande culpada pelo apagamento da auto confiança das pessoas negras.

Ele começa então a contar a experiência de Rakim na época de escola. Ele não era bonito para aquelas pessoas que tinham o pensamento baseado na estrutura racista da nossa sociedade, que considera a pele branca, o cabelo liso, os olhos verdes e azuis como os únicos sinônimos de belo. Ali ninguém estava ligando para a "aura", pro que vem de dentro. Até a menina que ele gostava, que era preta, não o achava atraente. Tudo devido a inferiorização que tanto a mulher quanto o homem negro sofrem. Esse sistema deixa a nossa mente colonizada, nós só enxergamos beleza nos padrões que nos foram e são impostos todos os dias através da grande mídia. Por isso a representatividade é tão importante para essas pessoas e pra todo mundo. Pois a menina também sofria discriminação por ser negra, ela era chamada de Akuma. Rakim queria agir:

"- Eu nunca comprei uma treta tão bem

- Eu pensei em render um caixa no grito

- Por minhas irmãs e ela, porque ela é preta também

- E é por causa deles que ela não me acha bonito!

Ele lembrou de tudo isso hoje ao entrar no banheiro da faculdade e ver o que na porta tava escrito..."

Assim entra o refrão cantado por Amiri:"Você quer o mundo pra você/ e não importa o quanto custe/ ou quantas vidas custem/ ou o que eu sinta como ser". Amiri ou Rakim estão a procura de algo que pelo menos faça sentido pra eles, eles estão em busca de serem tratados minimamente como seres humanos. No desenrolar da história vemos e ouvimos Rakim gritando, de forma agressiva, como se ele estivesse entrando em um lugar para matar essas pessoas. Esse "grito" na segunda parte da musica me marcou muito, porque é libertador, ao mesmo tempo pensei na música Inácio da Cantigueira, do Emicida, onde ele fala que: "O inimigo e seus lacáio vem com tudo, joga sujo, e você não pode simplesmente reagir com a mesma baixeza" . Os racista fica em choque ouvindo essa parte do Amiri, a justificativa vem justamente nessa frase de Emicida. Voltando, Rakim diz que vai matar alguém, na real ele vai matar um monte. E real, Rakim e Amiri "matam" um por um de forma magistral: "Garçom, pode descer mais Bacardi/ É uma taça pro Cocielo e outra pra Day McCarthy/ Lindos, só não liguem pro gosto de veneno, tá bom?/ Ops, vai já tarde!". Se não sabe porquê Rakim envenenou essas duas pessoas, pesquise. A saga continua, o adolescente toca na questão da desigualdade, já que os jovens brancos ricos já nascem com tudo comprado pra eles. Amiri sabe que isso gera ódio, ainda mais quando esse branco acha que as cotas raciais ou socioeconômicas são privilégios. A questão é, vivemos mais de 300 anos de escravidão negra no Brasil, após a abolição quase nada foi feito para a inclusão desses negros na sociedade, sem contar a marginalização imposta a eles. E ainda vem gente querer falar que isso é privilégio? que o cotista tira seus direitos? Meu sincero vai tomar no cú a quem pensa dessa forma. As cotas raciais tem a função de reparação histórica de um país que foi sustentado por mão de obra africana e negra sem pagar um centavo. Então, não fode. É toda essa merda falada e disseminada no Brasil de hoje que faz crescer o ódio em pessoas como Rakim. Abrindo um parenteses, é muito interessante a forma como Amiri vai se sensibilizar com a questão da mulher negra nesses singles, as tratando como irmãs, com bastante cuidado, algo em falta pra alguns MCs e pra nós, de um modo geral também.

Rakim entrou pra matar esses filhotes de Hitler, os racistas ao seu redor pedem calma agora. Mas o garoto está incontrolável, cuspindo todo o ódio que jogaram nele primeiro. O MC então termina com esses versos: "E não sabe o que é nascer e num ter berço/ É inconcebível, igual Machado de Assis num ter verso/ Ou morrer tentando provar que é tão ser humano quanto.../ Conte me mais sobre racismo reverso!". Então se ouve o barulho de um disparo de tiro. Essa questão do racismo reverso é um debate quente na internet, a grande questão é que isso não existe. É só pegar a história, nenhum povo branco foi discriminado de forma sistemática durante séculos pela cor de sua pele. Racismo reverso é uma falácia, uma inverdade, uma mentira bem mentirosa, fechou? Ainda sobre a música, Amiri constrói uma storytelling que leva a gente para dentro daquela narrativa que ele contou, como se tudo estivesse passando em frente aos nossos olhos. Storytelling é uma modalidade muito foda no rap, é a habilidade de construir narrativas e contar histórias, de forma a levar o ouvinte para aquele contexto. Rodrigo Ogi é um dos mestres nisso, pesquisem se não conhecem.

Recapitulando o título da canção, entendemos por que se chama Um Dia de Injúria. Essa é uma história do cotidiano de um jovem negro. Auto estima sendo jogada pra baixo, racismo sendo praticado em forma de piada, tudo isso se mistura a raiva que cresce dentro dele. Se ele resolve externar essa raiva de forma agressiva, vão falar que já era algo de se esperar e novamente vão taxá-lo de animal. Tudo que pessoas racistas esperam é alguma brecha de uma pessoa preta para que possam por em prática seu discurso de ódio.

O beat dessa música é um boombap, que nos ajuda a criar todo o pano de fundo da história contada por Amiri. O interessante é que mesmo na parte mais agressiva das rimas, o instrumental não destoa do flow mandado pelo MC.


A segunda canção é Pantera Preta, traz uma letra muito forte, onde a gente pode perceber melhor toda a influência de África na forma de escrever de Amiri. Foi o rap que mais me tocou, até porque eu consegui enxergar a complexidade por trás da letra. Começando pelo título, eu estava numa aula sobre descolonização na universidade, o professor estava falando sobre o preconceito sofrido pelas mulheres dentro do movimento "dos" Panteras Negras. Então ele estava falando sobre a própria palavra pantera, que é uma palavra feminina. No português o correto é a pantera, não O pantera. Depois dessa aula pensei nessa música do Amiri, como ele traz isso pra dentro da canção, a Pantera Preta, a Mãe África, sua própria Mãe. Essa foi uma questão que me deixou mais empolgado ainda com a música.

O refrão já traz toda força, que Amiri busca transmitir:"Eu vou viver, eu vou viver, eu vou viver, eu vou viver/ Eu vou viver, nem que pra isso eu tenha que morrer/ E meus filhos não tenham que sofrer/ Meus ancestrais, venham me valer". É um canto de resistência, a grande questão é ficar vivo, de uma forma ou de outra, nem que pra isso Amiri tenha que morrer. Seja vivo em vida, ou com sua obra, o MC quer ser lembrado dessa forma, um espirito de luta, de resistência, de força, de liberdade. Essa questão é importante de ser tocada, pois logo em seguida o MC aborda a questão do genocídio negro. Em matéria de 2016, a BCC Brasil abordava que a cada 23 minutos um jovem negro era assassinado no Brasil. Clique aqui para ver. A resposta para o porquê de haver uma espécie de alvo em pessoas negras está explicito na música: "É porque das senzalas, quilombos e guetos vim/ É porque eu sou preto, sim!". Isso também justifica o porque das pessoas não "aguentarem" ver um preto no topo. Há muito tempo vivemos num país onde policiais tem praticamente carta branca para matar pessoas negras, é preciso ouvir e falar sobre o assassinato em massa dessas pessoas simplesmente por causa da cor ou condição socioeconômica.

Mesmo assim Amiri tenta encontrar forças na sua ancestralidade, na sua multiculturalidade, que vem do continente africano. Ele fala de África no sentido de uma Terra Mãe. Uma mãe que sangrou por ter seus filhos arrancados a força pelos europeus, para serem escravizados por toda a América. Mas a África é uma mãe que nunca foi esquecida, nem nunca vai ser, seja pelos filhos ou pelos tataranetos. Amiri mostra toda sua força que vem de sua mãe, de sua ancestralidade, da fé nos orixás. Podem até prendê-lo mas seu espírito é de liberdade. Ele usa a referência de Tereza de Benguela, que foi escravizada, mas não deixou os grilhões a prenderem de verdade. Se tornou uma grande líder e heroína quilombola, saiba mais nesse vídeo. Ele mostra que sua mãe é como uma pantera: forte, protetora, e se você tentar contra ela vai sentir o peso de sua pata. Amiri termina o primeiro verso dessa forma: "Por mim, nada trata ela igual lata velha/ Ela é Maria, Afeni, Angela, Assata, Armelia/ E eu Huey!". Ele cita novamente nomes de mulheres que fizeram história, Assata Shakur, Afeni Shakur (mãe de Tupac) e Angela Davis. Intelectuais negras que lutaram pelos direitos civis nos EUA, inclusive fizeram parte de alguma forma do movimento Panteras Negras. As mulheres que eram maioria dentro do movimento. Já Amiri se identifica com Huey Newton, líder do movimento, que ao longo do tempo sofreu diversas represálias por parte do governo norte-americano. Pesquisem sobre essas pessoas. Não identifiquei quem seria Maria e Armelia. O que eu acho foda é como Amiri consegue mesclar a corrente do Afrocentrismo com uma ideia do Atlântico Negro. O Afrocentrismo é um conceito que coloca todos os negros do mundo interligados pelo continente africano, a África é o centro de tudo. Já o atlântico negro seria o ponto de conexão dos negros, através da América, Europa e África. Essas são teorias criadas por autores africanos e não-africanos, procurem mais. Amiri tem norte no continente africano, abordado através de sua ancestralidade, mas nunca deixando de olhar para sua realidade, que é o Brasil, que é São Paulo, que é a periferia. O movimento Hip Hop em si é um produto desse atlântico negro, pois ele olha pra África, mas foi algo criado na América. É por essas e outras que o MC é tão Hip Hop.

Amiri volta a abordar a questão do genocídio negro, que acontece mas que não é transmitido da forma que deveria. "Se tivessem passado o que nós temos passado/ Mas só se cê habita a preta pele, cê sente/ Um certo medo do futuro quando se tem Amarildo, Claudia, Marielle: Presente". O MC fala do medo de ser negro no Brasil, quando o número dessas mortes só aumenta, só clicar aqui para ver. Amiri cita casos que tiveram repercussão quando aconteceram, como o caso de Claudia Silva Ferreira, morta por policiais sendo arrastada pela viatura. Isso aconteceu em 2014, até o momento os policiais não foram nem julgados, veja aqui. Ou mesmo o caso de Marielle Franco, assassinada brutalmente a tiros no inicio do ano. Mulher, negra, favelada, lésbica, Marielle era vereadora no RJ e já se soma 257 dias sem respostas de quem a matou. São histórias esquecidas pela mídia e pela justiça. Como não ter medo quando você é negro ou negra? como enxergar perspectiva? Amiri pergunta, como um país vai pra frente de forma igualitária desse jeito? O genocídio negro beneficia uma classe social, uma classe racista, que tem ajuda de uma polícia racista para a execução de seus planos. Um grande problema que o estado falha em conter, falha muitas vezes de propósito.

No último verso, o MC trata de assunto que também gera debates na internet. É a questão da meritocracia. O ponto é que não se pode falar em um país meritocrático, quando todas as pessoas não saem da mesma linha de partida. Numa corrida, se o meu oponente sai a 100 metros de distância atrás de mim, além de durante o corre dele sofrerá com obstáculos muito maiores que o meu. Eu ganho a corrida, porque pra mim foi mais fácil. Isso não é meritocracia. O Brasil é um país muito desigual para o discurso meritocrático ter legitimidade. Isso vem da nossa própria história, que Amiri conhece e cita na suas linhas. Novamente, vivemos num país onde o trabalho escravo perdurou por mais de 300 anos, onde um dos pilares da economia era justamente a mão de obra negra escravizada. Nos mais de 100 anos que se sucederam pouca coisa foi feita de forma efetiva para que essas pessoas pudessem ascender ou no minimo terem uma vida digna de um ser humano. Esse é um problema mundial, que hoje é fruto desse mundo capitalista onde vivemos. São mais de 300 anos de atraso. O pior é essas pessoas, hoje netas, bisnetas de escravizados, terem que ouvir de pessoas da elite, netos e bisnetos de senhores de engenho, que cotas são privilégios. Apesar de tudo isso, Amiri canta:"Daqui no país do futebol/ Povo ligado à raíz luta igual (Huey)/ Andam na frente e querem que a gente corra atrás/ Querem a "boa paz" e que a gente morra, mas.../ Vou viver". São gritos de resistência em meio a toda essa guerra vivida pelo povo negro. Até porque Amiri tem diversas referências, inspirações, que não o deixam outra escolha se não lutar. Inspirações nacionais mesmo, como por exemplo, Zumbi, Dandara e Tereza. O Brasil é um país ligado a luta, movimentos de resistência como os quilombos, ou figuras importantes como foram Marielle Franco e Carlos Marighella.

O instrumental desse rap vem com um toque de piano que dá o tom da letra, com uma bateria que vem pra marcar o tempo, pra mim essa produção tem mais a cara do seu autor. A produça das duas músicas é de Deryck Cabrera, monstro dos beats, ja´trabalhou com diversos artistas do rap nacional como Don L, Criolo, Coruja BC1, Muzzike, Diomedes Chinaski, entre outros. As músicas estão disponíveis em todas as plataformas digitais, está sendo distribuida pela ONE Rpm, em nome do selo Mudroi (se não me engano que é do MC Parteum). Os raps também já tem um lyric vídeo no youtube, clique aqui.

Amiri novamente eleva o nível do rap brazuca, cantando a verdade, se mostrando como uma tocha de resistência, que vem de toda sua vivência, de sua acentralidade, de seu auto-conhecimento. Esperamos que Amiri lance mais coisas, um disco quem sabe, pois necessitamos de MCs como ele, quanto mais melhor.

Obs: tudo falado aqui são análises das letras, notícias, artigos acadêmicos, entre outros. Falo aqui na posição de um homem branco, que não sofre nenhum tipo de racismo por exemplo.


Errata: Eu tinha colocado no texto que o hiato do Amiri tinha se dado devido a depressão, mas eu estava errado, o próprio Amiri me pediu para que eu corrigisse. Sendo assim corrigi o texto acima.

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